domingo, 29 de agosto de 2010

NÃO HÁ NADA NO BOSQUE


                                 Breve seria noite. Mas ainda era doce atardar-se do lado de fora da casa, deixar-se ficar na última luz. O ar até então morno desembainhou suas primeiras lâminas. O capim alto e queimado pelo verão ondulou leve.  A mulher cruzou os braços sobre o peito. O homem, sentado no degrau da entrada, recostou-se contra a porta. Não falavam. Foi então que o cachorro latiu.
     Voltou a cabeça para o pequeno bosque de abetos, orelhas erguidas, e latiu.
     Não há nada ali seu bobo, venha cá! ordenou o homem desejando que o cão se calasse e fosse restabelecida a quietude anterior. Inclinou-se para frente, estalou os dedos. O cão não se moveu.
    Vai ver, tem alguma coisa no bosque, disse a mulher. E ele sabia que havendo suspeita de alguma coisa no bosque caberia a ele ir verificar.
    Não tem nada, o que você quer que tenha? respondeu sabendo que se o cão latisse novamente não lhe sobraria alternativa a senão levantar-se e caminhar até a mancha azulada dos abertos. O cão latiu.
    A mulher agora olhava firme em direção ao bosque.
   O homem levantou-se, avançou até onde estava o cão, chamou-o enquanto continuava andando. O cão não o seguiu. Praga de cachorro! murmurou o homem. E foi.
   O bosque estava mais escuro do que tinha pensado. Ali a noite havia se antecipado, deslizando enevoada entre os troncos. O homem esfregou os braços com as mãos para combater o frio, aspirou fundo o perfume de resina. Andou um pouco a esmo, à procura nem sabia de quê. Eu devia vir mais aqui, pensou sentindo debaixo da sola o chão escorregadio e liso, coberto de agulhas. Um galho estalou, alguma coisa volteou no ar. O homem pensou vagamente que seria bom deitar-se naquelas sombras, que faria isso algum dia. E saiu do bosque. Estava a meio caminho quando o cão latiu outra vez.
   A partir daquela tarde foi como se um marco houvesse sido plantado em algum lugar entre os troncos. Um marco de perigo que mantinha alerta os sentidos do cão.
   Latia. Trotava diante da casa, de um lado a o outro, como se defendendo a porta. Avançava súbito, saltava para trás, depois deitava-se quase encoberto pelo capim, o focinho entre as patas, os olhos atentos. E rosnava.
   De nada adiantaram as admoestações, as ordens. O homem quis prendê-lo na coleira. O cão debateu-se tentando soltar-se com os dentes, puxando, até abrir chagas no pescoço, obrigando o homem a libertá-lo. Parecia à mulher que o melhor era mantê-lo dentro de casa, chamava, batia com o prato de comida, seduzia-o. Mas por pouco tempo. O animal raspava a porta com as patas, cainhava metendo o focinho na fresta, e a mulher penalizada cedia.
   O que tem esse bicho? perguntavam-se impacientes. Várias vezes o homem voltou ao pequeno bosque. A mulher chegou a ir com ele. Vasculharam. Nada. Perigo nenhum que se visse.
   O cão, inquieto. Mal comia. O olhar sempre pronto a abandonar o que quer que esteja olhando, para voltar-se naquela direção, na direção da mancha azulada, da suave rigidez dos abetos.
   Começou a latir também à noite, quando certamente não podia ver. Mas os sentidos do cão, pensaram os donos. E o sono se tornou difícil. A inquietação do animal pesava sobre a casa. A ameaça rondava, uma ameaça que eles não podiam ver mas que se corporificava no focinho tenso do cão, nas orelhas erguidas capazes de captar mensagens que a eles, os ameaçados, escapavam.
   Talvez fosse melhor cortar as árvores, sugeriu um dia o marido no café da manhã, com a cabeça metida na xícara. Havia pensado nisso durante a noite, insone. apesar do tom, era mais que uma sugestão.
   As árvores!?, exclamou a mulher, defensiva como se ele tivesse lha pedido para cortas os cabelos. São tão bonitas nossas árvores.
   Pronto, já haviam virado nossas árvores. Agora seria mais difícil convencê-la. Esforçou-se para ser paciente, que os abetos estavam ficando velhos, alguns já se entortavam, breve não seria um ou outro desabaria, era um perigo, o pequeno bosque não seria mais o mesmo ainda que o deixassem como estava. E, depois, a vista. Encobriam a vista. Seria bom ter o horizonte livre. Sobretudo - e o homem sabia que esse era o argumento definitivo - é arriscado um bosque hoje em dia. Pode abrigar qualquer coisa.
  Vieram os homens. O ruído das serras mecânicas sobrepujou qualquer outro durante dias. O ar encheu-se de pó dourado, o cheiro de resina ardia nas narinas. Havia uma quase alegria nesse ir e vir de operários e máquinas, apesar da melancolia com que a mulher olhava às vezes, encostada no umbral, enquanto o terreno era despido de seus cabelos azuis. Depois tudo voltou ao normal.
   Começava o outono. Nos fundos da casa empilhava-se a lenha que alimentaria a lareira. Lentamente atenuava-se o cheiro de resina. Agora da janela - o frio não permitia que se atardassem lá fora -, olhavam o entardecer, viam o sol já mais pálido descendo por trás do horizonte livre. Era um belo espetáculo, embora a sensação de desamparo que os tomava por estarem assim no descampado.
   Uma tarde, a primeira em que acenderam a lareira inaugurando as novas reservas, o cão deitado sobre o tapete sobresaltou-se de repente. Ergueu a cabeça. Foi à porta. Farejou de um lado e outro. Quer sair, disse a mulher. O homem levantou-se, abriu a porta. O cão saiu de um salto. Cuidado com o frio, advertiu a mulher sentindo a lufada. O homem ainda viu o cão, orelhas erguidas, olhando para a campina que se enclinava ao vento, na exata direção onde antes havia estado o bosque. Fechou a porta contendo-a com a mão espalmada. Então ouviu o cachorro latir.





( In: Marina Colasanti , O Leopardo É Um Animal Delicado. Rio De Janeiro: Rocco, 1998. p.78.)  


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